Unção: um novo sacramento?

A ressurreição de Lázaro de Andea Vaccaro (1600-1670)

As palavras, tanto no aspecto religioso quanto no profano, têm significado transitório que muda não somente com a época, como também com a região e contexto onde é usada. Enfocando a linguagem no restrito meio evangélico não é incomum que um termo dito em um contexto denominacional provoque reações diferentes em outros grupos de outra denominação. Não se trata aqui de palavras emprestadas de outros credos, como as do tipo: “Tá amarrado” ou semelhantes.

Com a recente ênfase do momento de louvor nos cultos, algumas palavras tem sido ressuscitadas assumindo conotações diferentes da proposta inicial, de quando foram criadas. Exemplo: levita, que anteriormente designava os filhos de Levi, sacerdotes da linhagem de Aarão por herança, atualmente é usada para designar grau de excelência dos cantores de Gospel ou, como chamávamos antigamente, corinhos evangélicos. Para se encontrar semelhanças que justifiquem abrigar ambos os grupos sob o mesmo aposto, se faz necessário não somente derrubar as barreiras religiosas, sanguíneas e temporais, há de se fazer uso também de uma considerável dose de boa vontade. Onde se lia explicitamente heredita­riedade, lê-se agora o hábito faz o monge.

Mas não foram os levitas que motivaram estes breves rascunhos. Meu desejo sincero é que Deus os aumente sempre em número e inspiração, para que participem com o mesmo espírito da Escola Dominical, pois como bem lembrou o Mestre dos mestres: “...deveis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Lc 11.42). A questão aqui levantada recai sobre os diversos usos da palavra unção, que enfocando novamente o contexto evangélico assumiu importância de sacramento. “O importante é a "unção”, ou “este é mesmo ungidaço”, dizem alguns,  quando o assunto é a conduta pessoal de alguém. O “grau de espiritualidade”, como era chamada a empírica medição da fé, já foi quantificado pelas obras, pelo número de almas levadas a Jesus, pelo batismo do Espírito Santo, pela quantidade de dentes de ouro. Mas nesses últimos tempos passou a ser mensurado pela unção.

Como surgiu este conceito? Quais são os seus fundamentos bíblicos? Onde repousa a sua argumentação teológica? Por que conquistou semelhante status? Mesmo correndo o risco de navegar contra a maré litúrgica atual, vou me atrever a responder algumas destas questões, e me permitir levantar outras tantas.

Comecemos por escavar as suas raízes:
1º - A prática da unção, na Bíblia, remonta a era de Jacó, mas nada nos impede de supor que Abraão ou mesmo Noé houvessem lançado mão dela. (Gn 35.12).
2º - Tinha por finalidade primeira prevenir a infecção de ferimentos, mas servia também para refrescar o corpo e conferir um aroma agradável ao ungido. (Sl 133.2).
3º - Era o ponto alto na consagração de sacerdotes e na entronização de reis. (Ex 28.41, I Sm 9.16).
4º - Usava-se também na prática do embalsamamento ou na preparação do corpo para o sepultamento. (Mc 14.18)
5º - Com o passar do tempo serviu para instalar juízes, promover generais ou ainda identificar pessoas com missões especiais, tais como do “vingador de sangue”. (Nm 35.25), ou o messias (Is 45.1)

É bem certo que algumas poucas pessoas no Antigo Testamento foram ungidas por ordem direta de Deus. Podemos citar os reis Davi (I Sm 16.3) e Jeú, e o profeta Eliseu (I Rs 19.16). A unção com óleo propriamente dita sucedeu-se apenas com Davi e Jeú. Eliseu foi considerado ungido quando Elias revoltado, de passagem, jogou sobre ele o seu manto. Estas unções não foram nada mais do que constatações da prévia escolha de Deus. Estes homens foram ungidos porque haviam sido previamente escolhidos por Deus para funções específicas, porém, para nenhuma função que fosse vitalícia ou irrevogável. Mas a Bíblia, na sua imparcialidade, não omite as narrativas das frustrantes tentativas de se ungir a quem não foi escolhido. Saul, que fora entronizado rei pela voz do povo, mesmo recebendo a unção foi um autêntico desastre, menos por sua capacidade e caráter do que pela falta da escolha divina. Mas Deus, ao ungir o adúltero, trapaceiro e assassino Davi, faz dele o maior rei de todo o Antigo Testamento. Matias, o escolhido através de sorte, foi ungido apressadamente para ser o décimo segundo apóstolo no lugar de Judas, depois disso, nunca mais se ouviu falar dele. Deus, através dos seus próprios critérios optou por escolher um torturador homicida e transformá-lo no seu maior missionário. Nos casos de Eliseu, Davi e Paulo, assim como em qualquer caso, a escolha de Deus sempre se sobrepõem à unção, tornando-a meramente ritualística.

Não poderíamos deixar de citar a unção de Jesus que faz dele efetivamente um Cristus, palavra grega que é a tradução exata de Messias ou Ungido. Jesus, ao lançar as bases do seu ministério, deixa bem claro ser ele um messias, assumindo em toda plenitude a profecia de Isaías (Is 61.1). Esta sua identidade permanecerá oculta até o seu encontro com a mulher samaritana no poço de Jacó. (Jo 4.6). Não há elementos para comparar esta unção com qualquer outra. Nem mesmo com a dos demais messias ao longo da história de Israel. Facínoras como Nabucodonosor e Ciro foram igualmente aclamados pelo mesmo título (Jr 25.9 e Is 45.1). A unção de Jesus é única, exclusiva e definitiva. Porém, nem mesmo a esta unção diferenciada o libertou das limitações humanas. Seus atos de misericórdia estavam limitados ao perímetro que o circunscrevia. A cura do servo do centurião à distância aconteceu pela fé do seu senhor que estava em contato íntimo com Jesus. Sua glorificação e extrapolação dos limites se deram somente após a sua ressurreição, quando totalmente livre do seu corpo mortal.

Quais os parâmetros que algumas pessoas se dizendo ungidas usam para afanosamente investirem-se de poderes que nem mesmo o Mestre dos mestres lançou mão? A verdade é que a unção jamais se nivelará à bênção de um sacramento. A água do batismo, assim como o pão e vinho da ceia, embora não possuam nenhum poder extraordinário oculto (Sermões de Wesley – Os meios de graça), são sinais suficientes e inequívocos de que “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. (Rm 5.5). Não há, portanto, que se admitir que uma prática comum à grande maioria dos cultos pagãos da antiguidade venha, de roupa nova, nos comunicar acima dos sacramentos instituídos por Jesus, a graça de Deus. Mesmo sobre outros meios de graça, que não são propriamente sacramentos, como a oração e o jejum, a unção não tem predominância. Jesus exigiu que seus discípulos ao orar, ou jejuar, não se dessem ares de fariseus. Recomenda-lhes a boa aparência, estando nela embutido o costume de ungir os cabelos. A recompensa, contudo, se dará pela oração e pelo jejum feitos em oculto, e não pela unção declarada. (Mt 6.17)

O que dizer da exacerbada valorização da unção? Como endossar argumentos que A ou B são verdadeiramente ungidos e se projetam acima dos demais. Deus não faz acepção de pessoas, mas se fizesse sua escolha recairia invariavelmente aqueles a quem damos menos crédito. É o que nos conta Jesus na parábola do Fariseu e o publicano, onde Deus ignora o mestre religioso que todos, inclusive ele próprio, achavam fantástico, e atende um pecador comum, que mal articulava palavras. Apenas balbuciava: “Tem misericórdia de mim”. Não há nada que eu possa fazer para Deus me amar mais. E nada que eu possa fazer para Ele me amar menos. Uma vez que o Espírito foi derramado sobre toda a carne, tanto A quanto B, assim como o abecedário inteiro, são igualmente ungidos com todo o poder que esse espírito pode conferir, e, desta forma, são todos igualmente vocacionados. O reconhecimento de que o cristão é ungido, foi uma prática salutar e comum na história da igreja, mas nunca se prestou para fazer com que o dom ou o ministério de uns se sobressaíssem sobre os demais. Em um apelo dramático, Paulo adverte que os enviados (a palavra apóstolo significa enviado) como ele, devem assumir que são postos por Deus em último lugar, considerando-se como lixo do mundo e escória do universo. Ser considerado lixo ou escória, realmente não pode ser pretexto de qualquer tipo de ostentação. E acreditem: é extremamente mais degradante a palavra grega peri-psema), a mesma que nos foi traduzida por lixo do mundo ou escória (I Co 4.9).

Então o que poderia justificar pastores portando, juntamente com suas Bíblias, frascos de óleo consagrados para a unção de fiéis? Por que razões esta semente vingou em nosso terreno tão meticulosamente preparado?

O que verdadeiramente existe por trás de tudo isso é uma ansiosa saudade da aliança do A.T., do tempo do legalismo ou do mais puro sacerdotalismo. Aquela volta ao rigor da lei. Nós queremos a lei. Por isso hoje ungimos com o óleo consagrado, mas já fizemos vigílias nos montes santos, fomos batizados com a miraculosa água do rio Jordão e estamos preparadíssimos para nos aquecer na fogueira santa do Sinai. Nós não queremos a liberdade.

Quando iremos entender que Deus, em Isaque, desistiu de todos os sacrifícios? Que no deserto, com Moisés, desmantelou os templos faraônicos? Que no exílio, abriu mão de uma raça exclusiva, de uma terra santa e de uma língua sagrada? E que finalmente em Cristo, recusou todos os ritualismos, toda forma de adoração que necessite de intermediários, épocas, lugares ou aptidões restritas? Os óleos consagrados, os montes de contrição e as fogueiras santas, assim como os entendemos, são os componentes de uma religião sem graça. Por que onde existe a graça, a maravilhosa graça de Deus, qualquer unção se torna dispensável, porque a graça nos basta.

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