Vasti: uma autêntica rainha

Vasti desposada, Ernest Normand
O mais polêmico livro da Bíblia talvez não seja a profecia surrealista de Ezequiel ou o Gênesis, que contém as tão especuladas narrativas da criação ou ainda o mal interpretado Apocalipse de João. Em todo cânon bíblico, alguns consideram que o livro de Ester encabeça a lista dos textos mais controversos.

Todos sabem que ele foi um dos últimos livros a ser aceito como inspirado pelos Setenta (colegiado de setenta e poucos rabinos que elegeu e organizou o cânon da bíblia hebraica, aceita pela tradição protestante). Não foi encontrada nenhuma versão sua nos Manuscritos do Mar Morto descobertos nas cavernas de Qumran. Foi energicamente refutado por Lutero, por que na sua versão grega não se achar, em nenhum dos seus 10 capítulos, uma vez sequer a citação da palavra Deus. Em contrapartida, foi o único livro da Bíblia que teve a sua divulgação proibida na Alemanha nazista na primeira metade do século passado, e a festa do Purin, anunciada por ele, completamente erradicada dos seus territórios.

Do que Hitler teria tanto medo? De um simples livro que narra a história da salvação do povo judeu condenado ao genocídio por uma jovem que se fez rainha na poderosa corte de Assuero (em grego Xerxes). O livro de Ester é tudo isso, e mais algumas outras coisas que poderiam ser acrescentadas, mas que não teriam relevância para o momento.

A personagem central é Ester, dela se conhece a origem, os pais, o tutor e todos os detalhes que enriquecem a conhecida história. Nas celebrações onde se comemora o Dia Internacional da Mulher, os atributos de Ester são amplamente enaltecidos e o grande amor demonstrado para com o seu povo, é motivo de inspiração e orgulho para as mulheres, que continuam a dar às filhas nomes das heroínas da Bíblia, onde o nome de Ester figura entre os principais. Mas por trás do palco, o que se revela é uma outra heroína bem diferente. Uma, que sequer é citada ou mesmo lembrada pelos leitores da Bíblia. É Vasti, a primeira esposa de Assuero.

Para início de conversa, a relação de Ester com Assureo se dá exclusivamente pelo heroísmo de Vasti, que foi duramente castigada pela sua obstinada integridade de mulher. Diz a narrativa do primeiro capítulo do livro de Ester que Assuero, já muito bêbado, mandou que Vasti viesse a sua presença vestida com a coroa real, para que seus amigos a contemplassem em toda a sua beleza. Uma ordem que poderia ser facilmente obedecida por qualquer mulher, quanto mais, pela esposa de um rei, cuja autoridade e domínio se estendiam da Etiópia à índia. Afinal, vestir a coroa era coisa própria de uma rainha. O que a tradução do texto não revela explicitamente, é o fato de que Assuero ordenou que Vasti se apresentasse aos seus convidados vestindo somente a coroa real. Se assim não fosse, de que outra forma eles poderiam contemplá-la em toda a sua beleza?

A corajosa recusa de Vasti gerou a polêmica que atravessa séculos. Deveria a mulher ser submissa ao homem em todas as suas ordens, por mais estapafúrdias que fossem? Seria a autoridade de um homem, por maior que fosse, soberana sobre a integridade da mulher? Vasti disse que não, e pagou um alto preço pela sua decisão. Foi destituída do seu trono e legada ao esquecimento, mas sua atitude ecoou em todo reino e por toda a história.

O texto bíblico nos retrata com fidelidade a repercussão daquele decisivo não: Respondeu Memucã na presença do rei e dos príncipes: Não somente contra o rei pecou a rainha Vasti, mas também contra todos os príncipes, e contra todos os povos que há em todas as províncias do rei Assuero. Pois o que a rainha fez chegará ao conhecimento de todas as mulheres, induzindo-as a desprezarem seus maridos quando se disser: O rei Assuero mandou que introduzissem à sua presença a rainha Vasti, e ela não veio. E neste mesmo dia as princesas da Pérsia e da Média, sabendo do que fez a rainha, dirão o mesmo a todos os príncipes do rei; e assim haverá muito desprezo e indignação. Se bem parecer ao rei, saia da sua parte um edito real, e escreva-se entre as leis dos persas e dos medos para que não seja alterado, que Vasti não entre mais na presença do rei Assuero, e dê o rei os seus direitos de rainha a outra que seja melhor do que ela. E quando o decreto que o rei baixar for publicado em todo o seu reino, grande como é, todas as mulheres darão honra a seus maridos, tanto aos nobres como aos humildes.  (Ester 1.16-20).

O fundamento de tudo que a mulher tem pleiteado ao longo dos séculos foi estabelecido por Vasti há 2500 anos. Tanto na história bíblica quanto na secular a atitude de Vasti é única, não encontra paralelo nem quanto a sua contundência, nem quanto a sua repercussão.

No Dia Internacional da Mulher, em que se enaltece os feitos das grandes heroínas das conquistas dos direitos da mulher, que a pioneira isolada de todo o movimento de valorização da mulher, a rainha Vasti, não seja esquecida. Mesmo que não conheçamos a sua origem nem o seu triste destino, mesmo que não conheçamos o deus a quem ela cultuava, que se fale sempre daquela, que através do fidedigno relato bíblico proferiu o autêntico não do Deus verdadeiro a todas as formas de humilhação e constrangimento, mesmo as mais sutis.


(este texto foi escrito por mim há pelo menos 20 anos, e já era considerado perdido. Porém, por meio da boa vontade e perseverança de uma amiga de juventude, Eliane Gonçalves, ele retornou às minhas mãos. Obrigado Eliane.)

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