Nietzsche e a religião, Zé Otávio |
No nosso texto base Paulo reafirma a sua condição de
liberdade: sendo livre de todos.
Sendo ele um judeu que vivia debaixo da constante ameaça de morte por parte da
liderança da sua religião e vivendo sob as pesadas cargas impostas pelo
imperialismo romano, do que Paulo exatamente se dizia livre?
Ao relatar a sua breve biografia em Filipenses 3.7, ele se declara: circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de
Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto
ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível.
Não bastasse, ele era simplesmente o aluno de Gamaliel, o mais proeminente mestre
da tradição rabínica daqueles dias. Isso é, Paulo tinha um currículo mais
extenso do que todos os verdadeiros apóstolos do seu e dos falsos do nosso tempo, juntos. Dele era
esperada a responsabilidade de levar as tradições, doutrinas e regras de
conduta do Judaísmo ainda mais longe e de forma ainda mais perfeita que
seus antecessores. Mas o que, para mim,
era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. No versículo
imediatamente seguinte ele vai dizer que tudo o que ele acumulou durante todos
os anos no judaísmo era esterco, no grego, merda, perto do que tinha vivido em sua nova fé. Na estrada
de Damasco, onde literalmente caiu do cavalo, ele rompeu com as amarras da
religião para viver exclusivamente pela fé.
A grande progressão do evangelho pregado por Paulo entre os
gentios logo chegou ao conhecimento da liderança da igreja primitiva em
Jerusalém. Os outros onze que não haviam passado pela experiência de Paulo,
ainda se encontravam firmemente ligados às tradições judaicas, e muito tinham a
questionar o modelo paulino de evangelização. Desse entrave surgiu o Concílio
de Jerusalém, o primeiro concílio da igreja cristã que se tem notícia. Porém,
por mais divergentes que fossem as posições, não havia como negar que o modelo de evangelização de Paulo era a que dava mais frutos. Apesar das mais constatáveis
evidências, a liderança em Jerusalém não perdeu sua pose e impôs a Paulo umas
poucas exigências, para que o braço da seita judaica na qual estava se tornando
a fé cristã fosse percebido à distância: Quanto
aos gentios que creram, já lhes transmitimos decisões para que se abstenham das
coisas sacrificadas a ídolos, do sangue, da carne de animais sufocados e das
relações sexuais ilícitas. Prescrições estas que, diga-se de passagem, Paulo
sequer considerou, pelo contrário. Como bem lembrou o rev. Kivitz: se os gentios lhe oferecerem carne
sacrificada, mandem ver na picanha. Ele sentia livre também para questionar
aqueles que na hierarquia natural lhe eram superiores.
Paulo também se deparou com a idolatria disfarçada de
piedade. O modelo de cristão que mais vingou e que sempre teve mais prestigio e
autoridade na igreja era aquele que enganava a si e aos outros se dizendo
espiritualmente superior. Os que "eram de Cristo" na Igreja de Corinto tipificam
muito bem este modelo. Eles não necessitavam da edificação, da exortação e nem
da consolação que os demais tanto careciam. Eles diziam que recebiam tudo isso
diretamente de Cristo. Este estágio de libertação de Paulo foi ainda mais
complexo que os anteriores, pois além de ter que livrar o seu nome deste
conluio religioso, ele tinha também que libertar toda uma igreja dessas
nefastas amarras e fazer tudo isso à distância. Contudo, ele o fez com rara inspiração em
uma das mais belas páginas de toda a literatura universal, aquilo que chamou de "Caminho sobremodo excelente": Ainda que eu fale a língua dos anjos; ainda que eu tenha o dom de
profetizar; ainda que eu tenha tamanha fé e ponto de transportar montes; se eu
não tiver amor nada disso se aproveitaria.(I Coríntios 13)
Paulo se sentia plenamente livre, mas por optou por ser
escravo de Cristo. Escravo de uma fé que o fez ver mais longe e o fez experimentar o céu
dos céus.
A história da igreja cristã está pontuada de libertos que se
fizeram escravos por amor a Cristo. Homens e mulheres que perceberam razão no
paradoxo liberdade X escravidão. Mas quem, talvez, melhor tenha descrito a
moral de escravos para Nietzsche tenha sido um monge agostiniano no século XVI chamado
Martinho Lutero, que afirmou: Um cristão
é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. O cristão é
servidor de todas as coisas e está sujeito a todos. Porque o cristão vive não
em si mesmo, mas em Cristo e no próximo. De outro modo, ele não será um
cristão.
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