Moral de escravos II

Nietzsche e a religião, Zé Otávio
Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. I Coríntios 9.19

No nosso texto base Paulo reafirma a sua condição de liberdade: sendo livre de todos. Sendo ele um judeu que vivia debaixo da constante ameaça de morte por parte da liderança da sua religião e vivendo sob as pesadas cargas impostas pelo imperialismo romano, do que Paulo exatamente se dizia livre?

Ao relatar a sua breve biografia em Filipenses 3.7, ele se declara: circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível. Não bastasse, ele era simplesmente o aluno de Gamaliel, o mais proeminente mestre da tradição rabínica daqueles dias. Isso é, Paulo tinha um currículo mais extenso do que todos os verdadeiros apóstolos do seu e dos falsos do nosso tempo, juntos. Dele era esperada a responsabilidade de levar as tradições, doutrinas e regras de conduta do Judaísmo ainda mais longe e de forma ainda mais perfeita que seus antecessores. Mas o que, para mim, era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. No versículo imediatamente seguinte ele vai dizer que tudo o que ele acumulou durante todos os anos no judaísmo era esterco, no grego, merda, perto do que tinha vivido em sua nova fé. Na estrada de Damasco, onde literalmente caiu do cavalo, ele rompeu com as amarras da religião para viver exclusivamente pela fé.

A grande progressão do evangelho pregado por Paulo entre os gentios logo chegou ao conhecimento da liderança da igreja primitiva em Jerusalém. Os outros onze que não haviam passado pela experiência de Paulo, ainda se encontravam firmemente ligados às tradições judaicas, e muito tinham a questionar o modelo paulino de evangelização. Desse entrave surgiu o Concílio de Jerusalém, o primeiro concílio da igreja cristã que se tem notícia. Porém, por mais divergentes que fossem as posições, não havia como negar que o modelo de evangelização de Paulo era a que dava mais frutos. Apesar das mais constatáveis evidências, a liderança em Jerusalém não perdeu sua pose e impôs a Paulo umas poucas exigências, para que o braço da seita judaica na qual estava se tornando a fé cristã fosse percebido à distância: Quanto aos gentios que creram, já lhes transmitimos decisões para que se abstenham das coisas sacrificadas a ídolos, do sangue, da carne de animais sufocados e das relações sexuais ilícitas. Prescrições estas que, diga-se de passagem, Paulo sequer considerou, pelo contrário. Como bem lembrou o rev. Kivitz: se os gentios lhe oferecerem carne sacrificada, mandem ver na picanha. Ele sentia livre também para questionar aqueles que na hierarquia natural lhe eram superiores.

Paulo também se deparou com a idolatria disfarçada de piedade. O modelo de cristão que mais vingou e que sempre teve mais prestigio e autoridade na igreja era aquele que enganava a si e aos outros se dizendo espiritualmente superior. Os que "eram de Cristo" na Igreja de Corinto tipificam muito bem este modelo. Eles não necessitavam da edificação, da exortação e nem da consolação que os demais tanto careciam. Eles diziam que recebiam tudo isso diretamente de Cristo. Este estágio de libertação de Paulo foi ainda mais complexo que os anteriores, pois além de ter que livrar o seu nome deste conluio religioso, ele tinha também que libertar toda uma igreja dessas nefastas amarras e fazer tudo isso à distância. Contudo, ele o fez com rara inspiração em uma das mais belas páginas de toda a literatura universal, aquilo que chamou de "Caminho sobremodo excelente": Ainda que eu fale a língua dos anjos; ainda que eu tenha o dom de profetizar; ainda que eu tenha tamanha fé e ponto de transportar montes; se eu não tiver amor nada disso se aproveitaria.(I Coríntios 13)

Paulo se sentia plenamente livre, mas por optou por ser escravo de Cristo. Escravo de uma fé que o fez ver mais longe e o fez experimentar o céu dos céus.

A história da igreja cristã está pontuada de libertos que se fizeram escravos por amor a Cristo. Homens e mulheres que perceberam razão no paradoxo liberdade X escravidão. Mas quem, talvez, melhor tenha descrito a moral de escravos para Nietzsche tenha sido um monge agostiniano no século XVI chamado Martinho Lutero, que afirmou: Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. O cristão é servidor de todas as coisas e está sujeito a todos. Porque o cristão vive não em si mesmo, mas em Cristo e no próximo. De outro modo, ele não será um cristão.

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