Filho do homem, Stanley Spencer |
Nos
evangelhos Jesus habitualmente se designa a si próprio pelo título de Filho do
Homem, expressão enigmática que sugeria, embora velando-o, o aspecto mais
transcendente da sua fisionomia. Para compreender seu alcance, é preciso
referir-se ao seu emprego no Primeiro Testamento e no judaísmo.
A linguagem
corrente da Bíblia
A expressão
hebraica e aramaica “filho de homem” (ben-’adam,
bar-’enãs) aparece mui frequentemente como sinônimo de ‘“homem”. Ela
designa um membro da raça humana, um filho de humanidade. Pensando naquele que
é o pai de toda a raça e leva o seu nome, poder-se-ia traduzir “filho de Adão”.
O uso da expressão sublinha a precariedade do homem, sua pequenez diante de
Deus, por vezes a sua condição pecadora votada à morte (SI 89,48; 90,3). Quando
Ezequiel, homem de adoração muda prostrado diante da glória divina, é
interpelado por Javé como “filho de homem”, o termo marca as distâncias e
lembra ao profeta a sua condição mortal. A bondade de Deus para como os “filhos
de Adão” é tanto mais admirável: ele multiplica para com eles as suas
maravilhas e a sua Sabedoria se compraz em permanecer com eles. Admira-se de
que um ser tão fraco tenha sido coroado por ele como rei de toda a criação: Que é o homem para que dele te recordes, o
filho do homem para que dele tenhas cuidado? Aí está toda a antropologia do
Primeiro Testamento: o homem diante de Deus não passa dum sopro, e contudo
Deus o cumulou de seus dons.
A linguagem
dos apocalipses
O Livro de
Daniel diz que para representar concretamente a sucessão dos impérios humanos
que irão desmoronar e dar lugar ao Reino de Deus, o apocalipse de Daniel 7 usa
duma imagem arrebatadora. Os impérios são Bestas que sobem do Mar. Estas são
despojadas de seu poder quando comparecem ao tribunal de Deus, que é representado
sob os traços de um ancião. Então chega sobre as nuvens do céu “como um Filho
de Homem”; ele avança até o tribunal de Deus e recebe a realeza universal. A
origem dessa concepção é incerta. O “filho do homem” dos Salmos ou de Ezequiel
não basta para explicá-la. Alguns invocam o mito iraniano do homem primordial
que volta como salvador no fim dos tempos. Talvez seja preciso buscar para o
lado das tradições supostas pela Sabedoria divina personificada ou pelo Adão de
Gn 1 e Sl 8, criado à imagem de Deus e pouco inferior a Deus. Em Dn 7, Filho de
Homem e Bestas se opõem como o divino ao satânico. Na interpretação que segue à
visão, a realeza cabe ao povo dos Santos do Altíssimo; é portanto aparentemente
a ele que o Filho de Homem representa, não por certo na sua condição de
perseguido, mas na sua glória final.
Contudo, as
Bestas eram figura tanto dos impérios como dos seus chefes. Não se pode
portanto excluir completamente que esteja havendo alusão ao chefe do povo santo
ao qual será entregue o império, em participação do Reino de Deus. De qualquer
maneira, as atribuições do Filho de homem sobrepujam as do Messias, filho de
Davi: todo o contexto o põe em relação com o mundo divino e acentua a sua
transcendência.
A tradição
judaica
A
apocalíptica judaica posterior ao Livro de Daniel retomou o símbolo do Filho do
Homem, mas interpretando-o em sentido individual e acentuando seus atributos
transcendentes. Nas Parábolas de Henoc, na parte mais recente do livro,
trata-se de um ser misterioso, que mora junto de Deus, possui a justiça e é
revelador dos bens da salvação mantidos em reserva para o fim dos tempos;
então estará assentado em seu trono de glória, juiz universal, salvador e
vingador dos justos, que viverão junto dele depois de ressuscitarem. Atribuem-se-lhe
alguns dos traços do Messias real e do Servo de Javé, pois ele é o Eleito de
justiça, mas não se fala, no seu caso, de sofrimento, e ele não tem uma origem
terrestre. Embora a data das Parábolas de Henoc seja discutida, elas
representam um desenvolvimento doutrinal que devia estar feito em certos meios
judaicos antes do ministério de Jesus. A interpretação de Dn 7 deixou aliás
vestígios no IV Livro de Esdras e na literatura rabínica. A crença neste
Salvador celeste prestes a se revelar prepara o emprego evangélico da
expressão “Filho do Homem”. (continua)
Nenhum comentário:
Postar um comentário