Migalhas para os cachorrinhos

Cristo e a mulher cananeia, Germain Jean Drouais em 1784
Mas Jesus disse-lhe: Deixa primeiro saciar os filhos, porque não convém tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos.
— Mas, senhor, — respondeu a mulher — até mesmo os cachorrinhos que ficam debaixo da mesa comem as migalhas de pão que as crianças deixam cair. Marcos 7.27-28

Estamos diante de um dos grandes dilemas da fé cristã, pois se por um lado este é o texto que muitos usam para por em cheque o amor com que Jesus recebia as pessoas que o procuravam, por outro nos coloca diante de uma escolha das mais intrincadas: é melhor ser um filho saciado ou um cachorrinho faminto?

Logicamente que nenhuma sã consciência teria qualquer dúvida quanto à escolha da primeira opção. Porém, algumas histórias contadas pelas Escrituras nos fariam ver que este assunto não é tão simples como se pensa, porque foram justamente os filhos saciados que foram os alvos de toda a reprovação desde que Israel conheceu o profetismo, e que foram os malditos que receberam a glória da salvação.

Ainda no berço da sua civilização, o povo hebreu, recém-liberto da escravidão egípcia, mostra que a sua opção preferencial era mesmo pela fartura, e que isso independia da condição em que ela está sendo oferecida: Ex 16.3 - dizendo assim: — Teria sido melhor que o SENHOR tivesse nos matado no Egito! Lá, nós podíamos pelo menos nos sentar e comer carne e outras comidas à vontade. Vocês nos trouxeram para este deserto a fim de matar de fome toda esta multidão. Moisés é assaltado pela surpresa do povo pela inexorável fartura nos grilhões da escravidão, que nada mais sinaliza do que a morte em vida, em detrimento de uma pálida possibilidade de sobrevivência na liberdade que somente a penúria podia oferecer. Neste conhecido episódio se pode concluir com total convicção que é a comida dos cachorrinhos, representada pelo minguado maná, e não a fartura das panelas de carne o melhor que Deus tinha a oferecê-los, e o melhor que eles teriam para aceitar.

Então é preferível ser cachorrinho? Essa também não é uma escolha que se apresenta de modo sempre favorável e incondicional. A mulher sírio-fenícia que protagoniza o texto da Bíblia, não dava mostras de ser uma indigente sem a possibilidade de outros recursos mais dignos. Muito provavelmente ela tinha uma família que a assistia, tanto a ela própria possibilitando que se atrevesse a buscar pela cura, quanto à sua filha que havia ficado em casa. Logo ela que era uma estrangeira, como é desdenhosamente chamada pelos discípulos, que ousa contestar a autoridade de mestre da qual Jesus estava imbuído. Tudo isso para exigir, na condição de cachorrinha, o direito de receber umas poucas migalhas.

Com toda certeza o amor que ela dedicava a sua filha já havia feito com que ela tivesse procurado essas migalhas em muitas outras mesas, e que por tantas vezes não havia se negado a mendigar por elas da maneira mais submissa que fosse, mas não obteve resultado algum. Apenas migalhas ineficazes. Era preciso antes saber de qual mesa esperar essas migalhas. Era preciso considerar antes a diferença que as migalhas ofertadas por Jesus podiam representar perante tantas outras ofertas mais fartas, muito mais atrativas e, à primeira vista, mais habilmente capazes de propiciar o bem tão desejado.

Com Jesus o tratamento é realmente de choque. De outra maneira não ficaria patente para os discípulos que foi a fé daquela mãe que libertou a filha do mal. De igual modo não ficaria compreensível para o povo da cidade estrangeira de Tiro, que diante deles estava o libertador de todo o tipo de mal. Até mesmo do mal que os seus poderosos da religião não puderam sequer enfrentar.

Por causa da tua palavra; por causa da tua escolha; por causa da tua decisão; por causa da tua convicção de que é melhor a penúria na liberdade do que opulência na opressão; por tudo isso, e somente por causa disso a tua filha foi curada.

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