Fogo estranho

Sacerdote zoroastriano guardando o fogo em Iazd
Nadabe e Abiú, filhos de Arão, tomaram cada um o seu incensário, e puseram neles fogo, e sobre este, incenso, e trouxeram fogo estranho perante a face do SENHOR, o que lhes não ordenara. Então, saiu fogo de diante do SENHOR e os consumiu; e morreram perante o SENHOR.  Levítico 10.1-2

Ao sul do Irã, na cidade de Iazd, existe em um templo dedicado a Zoroastro que possui uma pira cujo fogo arde continuamente há mais de dois mil anos. Várias gerações de sacerdotes o têm vigiado alimentando-o com madeira de sândalo para que ele nunca se apague. Esse é um dado que pode nos dar tanto a noção do zelo dos povos semitas por seus objetos consagrados quanto a dimensão exata da indignação contra os filhos de Arão por eles se apresentarem diante de Deus levando consigo o que o escritor bíblico chamou de fogo estranho.


O que chamou a minha atenção não foi propriamente a rigidez do ritual, mas a sutileza na identificação da origem do fogo, porque para nós fogo é fogo e a sua queima independe da origem. Esta é a diferença primordial entre algo que foi consagrado e o que é de uso comum. Entre o que foi dedicado a Deus e o que é bem comunitário.

Comecei a escrever essa meditação depois que vi a reportagem que mostrou uma tosca réplica da Arca da Aliança sendo levada sobre um caminhão do Corpo de Bombeiros de Belo Horizonte em carreata para o templo dos Anjos, que fica naquela cidade. Isso pode ser verificado aqui: http://www.youtube.com/watch?v=ae3Fzusv7lM#t=19

Sob a legenda de constituir-se no maior símbolo do poder e da presença de Deus na terra, a tal arca causou enorme euforia entre pastores e membros da denominação promotora do evento. Nunca uma igreja promoveu um ato de fé como esse, dizia o locutor ensandecido. Ainda bem que é verdade, digo eu.

A heresia e o oportunismo do evento já foram devidamente denunciados por outros blogs de cristãos indignados. Portanto, vou passar por cima desses sórdidos detalhes para chegar mais rapidamente ao ponto que pretendo levá-los. Por que manifestações ridículas desse tipo recebem tanto apoio dos nossos governantes, enquanto que ações concretas de cidadania e de promoção social de praticadas por algumas igrejas de menor expressão são ignoradas, quando não são proibidas? Não tenho a menor dúvida de que a pessoa que autorizou o uso indevido de uma viatura funcional e estratégica do governo pelo seu grau de instrução e pelo posto que ocupa, possa crer que aquela chanchada pornô venha a produzir algum tipo de bênção àquela população. Mas, ele tem a certeza de que se reverterá em prestígio e em muitos votos.

A classe política, se é que político tem classe, vive sempre atrás de um fogo estranho para oferecer aos seus eleitores. Esse fogo se materializa em dentaduras, saco de cimentos, empregos para o filho. Tudo, menos algo que sirva para o bem comum. Sacraliza-se o que existe de mais mundano para que seja apresentado em carreata como uma dádiva vinda diretamente dos céus. 

O pior ainda está por vir. Para a nossa geração de cristãos esse é o sinal definitivo de que não estamos mais conseguindo diferenciar o comum do consagrado. Digo isso não levando em conta o fato de praticarmos impropriamente vários rituais igualmente ridículos e de mau gosto, tal como o cortejo da Arca. Também pelo fato de profanarmos o que já foi bíblica e historicamente consagrado, como a Santa Ceia, o batismo e outros, mas pelo fato de estarmos levando fogo estranho à fé cristã, como elementos da antiga Aliança, já preteridos por Deus. Pelo fato também de desconsiderarmos completamente o enorme sacrifício que foi levado a cabo para nos libertar de vez de todos esses simbolismos vazios, de todas as crendices e das mais sofisticadas superstições.

Não sei ao certo se Deus está agindo conosco exatamente como fez com os filhos de Arão, pois assim procedendo já podemos nos considerar mortos e indignos da sua presença. Só sei que não consigo ver um fim ou mesmo um limite para essas associações espúrias entre o sagrado e o profano, entre a igreja e o estado.

Onde estão os sacerdotes que deveriam estar vigiando o fogo consagrado para que ele não se apague de vez? Onde estou eu que não me coloquei à frente daquele caminhão impedindo que o mal passeasse em carreata pelas cidades do meu país? Onde está a igreja que continua sabendo pelos canais alternativos as falcatruas que os canais oficiais compactuam e escamoteiam? (continua)

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